de: ‹Arnaldo Jabor›
Para ver como é difícil, nós achávamos que esse texto fosse "atribuído" ao Jabor...
Minha profissão é ver o mal do mundo. Um dia, a depressão bate. Não agüento mais ver a cara do Bush ostentando rugas na testa de preocupação com o nosso destino (que ele azedou), não agüento mais o Lula de boné dançando xaxado, não agüento ver o Sarney feliz, mandando no país, guardando o PT no bolso do jaquetão, enquanto os petistas, comunistas, tucanistas e fascistas discutem para ver quem é mais de esquerda ou de direita, enquanto o país afunda em violência e miséria, com o Estado sendo loteado entre esquerdistas sem emprego; não dá mais para ouvir que há transgênicos de esquerda ou de direita, principalmente quando ninguém consegue impedir as queimadas na Amazônia; passo mal também quando vejo a cara dos oportunistas do MST, com a bênção da Pastoral da Terra, liderando pobres diabos para a revolução contra o capitalismo; não agüento secretários de Segurança falando em forças-tarefa, em presídios perfeitos que não conseguem nem bloquear celulares; não suporto ver que o Exército se recusa a ajudar na repressão ao crime, com generais tão eficazes para arrasar a guerrilha urbana nos anos setenta.
Não suporto a polêmica desenvolvimento x austeridade, planos B, C e D, tenho horror do Fome Zero, tenho enjôo com vagabundos inúteis falando em utopias, bispos dizendo bobagens sobre economia, acadêmicos rancorosos decepcionados com Lula, não agüento mais ver a República tratada no passado, nostalgias de tortura, heranças malditas, ossadas do Araguaia e nenhuma idéia para nosso futuro, não tolero mais a falta de imaginação política, a retórica da impossibilidade sem saídas pontuais e originais, e vejo que a única coisa que acontece é que não acontece nada e que os juros baixos não acontecem nunca e penso: ‘Ahh... se os homens de bem tivessem a imaginação dos canalhas!’
Não aturo mais essa dúvida ridícula que assola a reflexão política: paciência x voluntarismo, processo x solução, continuidade x ruptura. Passo mal vendo político pedindo CPI para se lavar, deprimo quando vejo a militância dos ignorantes, a burrice com fome de sentido, o vice Alencar no bordão da queda dos juros, e o Palocci dizendo que não dá pé. Tenho engulhos ao ver essa liberdade fetichizada que rola por aí, produto de mercado, ao ver êxtases volúveis de clubbers e punks de boutique, livres dentro de um chiqueirinho de irrelevâncias, buscando ideais como a bunda perfeita, bundas ambiciosas, querendo subir na vida, bundas com vida própria, mais importantes que suas donas; odeio recordes sexuais, próteses de silicone, sucesso sem trabalho, a troca do mérito pela fama; não suporto mais anúncio de cerveja fazendo competição entre louras burras e Zeca Pagodinho jogado numa cilada, detesto bingo, pitbulls, balas perdidas, suspense sobre espetáculo de crescimento; abomino a excessiva sexualização de tudo, com bombeiros sexy engatados em mulheres divididas entre a piranhagem e a peruíce, o sexo como competição de eficiência.
Onde está a sutileza calma dos erotismos delicados? Onde, o refinamento poético do êxtase? Repugna-me ver sorrisos luminosos de celebridades bregas, passo-de-ganso de manequim, saber quem come quem na Caras, mulher pensando feito homem, caçando namorados semanais, com essa liberdade vagabunda para nada; horroriza-me sermos um bando de patetas de consumo, como crianças brincando num shopping, enquanto os homens-bomba explodem no Oriente e no Ocidente; não agüento mais cadáveres na Faixa de Gaza e em Ramos, ônibus em fogo no Jacarezinho e trens sangrando em Madri, museu de Bilbao, museus evocando retorcidos bombardeios, sem arte alguma para botar dentro, a não ser sinistras instalações com sangue de porco ou latinhas de cocô do artista.
Não agüento mais chuvas em São Paulo e desabamentos no Rio, gente afogada na Nove de Julho, enquanto formigueiros de fiéis bárbaros no Islã rezam com os rabos para cima; não agüento mais ver xiitas sangrando, dançando e batendo na cabeça no tão esperado século XXI, enquanto Bush reza na Casa Branca e o Dick Cheney, sujo de petróleo, fala em democracia no Iraque; não agüento mais ver que a pior violência é o acostumar com a violência, pois o mal se banaliza e o bem vira um luxo burguês.
Não admito mais ouvir falar de globalização, enquanto meninos miseráveis fazem malabarismo com bolinhas de tênis nos sinais de trânsito do Rio; não suporto o sorriso de Blair, a cara constrangida de Colin Powell, as pernas lindas de Condoleeza Rice, que me excita ao pensá-la em sinistras sacanagens na noite de Washington.
Não agüento cariocas de porre falando de política, festas de celebridades com cascata de camarão, matéria paga com casais em bodas-de-prata, novas forças-tarefa, Lula com outro boné, políticos se defendendo de roubalheira falando em honra ilibada, conselhos de notáveis para estudar problemas sem solução, anúncios de celular que faz de tudo, até boquete.
Dá-me repulsa e lágrimas ver mulheres-bomba tirando foto com os filhinhos antes de explodir e subir aos céus dos imbecis, odeio Sharon e Arafat, a cara de sábia estupidez dos aiatolás, o efeito estufa, o derretimento das calotas polares, casamento gay, pedofilia perdoada na Igreja, Chavez e seus referendos, Maluf negando, Pitta negando, o Sombra negando, enquanto juízes corruptos reclamam do controle do Judiciário, e o Papa rezando contra a violência sem querer morrer jamais; não agüento mais Cúpulas do G7, lamentando a miséria para nada, e tenho medo que o Kerry, que tem uma cara duvidosa de ponto de interrogação, com aquele queixo de caju, perca a eleição, entregando o mundo à gangue do Mal. Tenho medo de tudo, inclusive da minha antiga e endêmica depressão, essa minha vã esperança iluminista. E tenho medo, acima de tudo, que as pessoas não agüentem mais a democracia e joguem o país de vez no buraco.